Como é ter amnésia

Minha experiência com perda de memória

Avisos de conteúdo: contém menção a tentativa de suicídio, álcool, cigarro e hospitais.


Contexto: em final de março ou início de abril de 2015, eu fui hospitalizada por uma tentativa de suicídio. Eu fiquei dias em coma, precisei ser intubada e quando acordei, não tinha lembrança de nada do que aconteceu entre fevereiro de 2014 e o momento de ter acordado em 2015.




Algumas pessoas pensam que existe um "lado positivo" de alguém perder a memória: essa pessoa tem a chance de se tornar outra pessoa, de começar de novo. Não acho que alguém diria isso se entendesse que ter amnésia é muito mais do que só perder o acesso a alguns acontecimentos da sua vida.


É o que eu vou tentar explicitar aqui.


Digo, no entanto: minha experiência não é universal. Nenhuma experiência com doenças mentais é.




No início, você não percebe.


Pelo menos foi assim comigo.


Talvez porque eu tivesse acabado de sair de um episódio psicótico intenso que durou semanas depois de ter acordado de um coma de vários dias. Eu estava no hospital, sem saber a razão verdadeira de eu estar ali. Eu achava que era julho de 2013, mas era maio de 2015.


Eu estava desorientada, mas isso é comum de acontecer em pacientes que estiveram em coma, e eu sabia o essencial - meu nome, o que eu fazia da vida, meus pais - então ninguém prestou muita atenção. Na verdade, ninguém sequer me questionou sobre minha memória.


Eu mesma não prestei atenção nela.


Eu pensava que estava atordoada pelos acontecimentos: estar em coma, ter sido entubada, acordar, não saber onde eu estava e nem por quê eu estava ali.


Então, em um momento, quando eu tentei me lembrar do que tinha acontecido antes de chegar ao hospital, minha cabeça ficou em branco. A última coisa da qual eu me lembrava era de estar lendo Anna Kariênina na sala de espera de uma clínica para uma disciplina da faculdade.


Essa memória é de janeiro de 2014.


Eu me esforcei par lembrar o que aconteceu no resto de 2014. Minha cabeça continuou em branco, embora alguma coisa no meu âmago me dissesse que eu sabia de coisa ou outra. Sabia, mas não lembrava.


A diferença entre saber de algo que aconteceu com você e a de lembrar algo que aconteceu com você é a mesma entre presenciar um acontecimento e ficar sabendo dele por outra pessoa.


Quando outra pessoa te diz o que aconteceu, você não tem acesso à informação verdadeira. Você só tem o relato dessa pessoa e, embora você queira acreditar que ela esteja sendo fiel ao que viu, existe a interpretação dela. Isso acontece quando sua mente lhe diz que algo aconteceu, mas você não se lembra de como isso aconteceu.


O exemplo que eu dou é quando R. saiu de minha vida, em 2014. Eu apenas sabia que isso tinha acontecido porque era algo que estava na minha cabeça desde as primeiras sessões de fisioterapia após o coma. Eu entoava a abertura de Game of Thrones enquanto chorava, porque sabia que ela tinha ido embora.


Mas eu não me lembro de como isso aconteceu. Não sei que dia ou mês foi, não sei como recebi a notícia, não sei qual foi a minha reação à notícia. Eu tenho o fato, não tenho a narrativa.


Seria simples se tudo o que eu esqueci da minha vida fosse assim: se eu soubesse dos fatos, mas não tivesse a narrativa. Se eu soubesse o que aconteceu antes de eu acordar do coma sem os outros precisarem dizer para mim, eu não consideraria minha memória como perdida.


Mas eu não tenho sequer os fatos de muito do que aconteceu em 2014 e em 2015, antes de eu acordar do coma. É como se esse período não tivesse acontecido para mim. Quando me contam de algo que me envolveu, é como se estivessem contando de outra pessoa. É distante. Eu não me reconheço, não vejo em que momento da minha vida isso se encaixa.


Eu mencionei que enquanto estava no hospital, eu pensava que era 2013. Isso é tão visceral que até hoje, cinco anos depois de ter saído do hospital, eu me confundo com as datas: eu sempre acho que tinha 19 anos em 2015, quando tinha entre 20 e 21. E nos anos que correram depois, eu sempre tive a sensação de que minha idade real estava errada. Hoje eu acho que tenho 23 anos, e não 25.


Se alguém me perguntar se algum evento mundial importante de 2014 e 2015, eu não sei responder. Se alguém me perguntar algum evento pessoal do qual eu tenha memória de 2014 e 2015, eu não sei responder.


Mais do que não saber os fatos, eu também não me lembro das pessoas. Eu só me recordo de quem conheci até o final de 2013. De 2014 em diante eu não me lembro. Posso lembrar de uma interação ou outra, mas não sei como conheci a pessoa ou desde quando.


Isso de eu lembrar de "uma interação ou outra" é o suficiente para fazer algumas pessoas duvidarem da minha amnésia. A verdade é que eu tenho, sim, lembranças parciais dessa época. São todas flashes sem contexto, são todas pequenos momentos do dia-a-dia, e em todas elas eu me observo. É como se elas não fossem memórias de mim, e sim de eu observando outra pessoa.


Esses flashes não são numerosos. Lembro de colocar um livro na janela, fumar um cigarro, beber vodca escondida no banheiro e enviar um e-mail à minha terapeuta dizendo que não conseguia sair de casa.


Eu também tenho flashes de momentos que não aconteceram, ou que aconteceram, mas não da maneira que eu me lembro: eu lembro de ter terminado um relacionamento romântico de 2014, mas descobri que isso não aconteceu de verdade. Outro desses momentos é eu ter pensado que uma outra pessoa disse com todas as letras que não me suportava, quando não foi o que ela disse.


Outra coisa que se aplica tanto aos flashes quanto às lembranças que eu tenho do período que a amnésia não abarca é a ausência de memória emocional.


Eu não tenho certeza se esse conceito existe, mas eu defino memória emocional como as emoções ligadas às suas lembranças. Por exemplo, se você se sente injustiçado em algum momento no presente, você se lembra de algum momento passado em que se sentiu injustiçado. Eu não tenho isso: eu não sei o que senti em nenhum momento das lembranças que eu tenho, e quando sinto alguma coisa no presente, eu não sou levada  conscientemente à uma lembrança do passado.


Isso é uma parte do que me faz dizer que eu também perdi minha identidade: não tenho acesso às memórias quando quero ou preciso, e não tenho acesso às minhas emoções passadas. Outra coisa que me faz dizer que perdi minha identidade é ter chegado ao um ponto tão tabula rasa que eu não sabia dizer do que eu gostava, quais eram meus interesses e coisas semelhantes. Isso porque, com a perda da memória dos acontecimentos, foi-se também as lembranças do que eu fazia e o que me interessava nessa época.


É como se eu tivesse regredido ao final de 2013.


Perder a memória é mais do que ter a mente em branco quando você tenta se lembrar de algo.


Perder a memória é também perder a capacidade de nomear emoções e sensações. É ser incapaz de diferenciar fome de dor. É ter que aprender outra vez a distinguir o que se sente.


Isso é algo com que eu tenho dificuldade até hoje. Eu sei que sinto alguma coisa, mas não sei o que sinto. Isso não se resume apenas à fome e dores físicas, é algo também emocional.