Este texto pretende dar respostas mais completas a dúvidas que pessoas têm sobre identidades e pessoas xenogênero. Não é um texto feito para ser sucinto ou simplificado, justamente porque tal tipo de conteúdo já existe e não parece ajudar com certas dúvidas. Para quem procura algo mais básico, sugiro este carrd ou os links oferecidos sob “o que é xenogênero”.
O que é xenogênero?
Os textos desta página e desta foram escritos por mim, e acredito que sejam bem explicativos. Mas, resumindo, em minhas próprias palavras:
Xenogênero é um termo guarda-chuva para identidades de gênero que não podem ser descritas apenas a partir de comparações com gêneros binários ou com outros que podem ser definidos apenas a partir de comparações com gêneros binários, e que ao invés disso são definidos ao menos parcialmente a partir de outres estéticas, sensações, sentimentos, conceitos, objetos, formas de vida ou afins.
Para exemplificar, os seguintes termos são comumente considerados xenogêneros:
- Caelgênero: um gênero associado a uma estética espacial, como estrelas, nebulosas, alienígenas, buracos negros, ou mesmo o próprio espaço.
- Floragênero: Um gênero que parece estar profundamente enraizado ou entrelaçado com uma ou mais espécies de plantas.
- Malificae: Um gênero relacionado com bruxaria. É dependente da interpretação de quem usa o termo, mas pode parecer mágico e/ou relacionado com bruxes, ter conexão com feitiços, sigilos e outros tipos de magia, e/ou parecer relacionado a uma vertente específica.
E, embora exista o conceito de xengênero - isto é, de que qualquer gênero pode ser experienciado como um xenogênero - aqui estão alguns exemplos de identidades que eu não consideraria parte do guarda-chuva xenogênero por padrão:
- Autonomique, maverique e outros gêneros definidos de forma similar: Embora suas descrições falem sobre independência, liberdade e/ou afins, estes conceitos parecem estar mais é descrevendo uma liberdade dos gêneros binários e/ou de outros em seu entorno, ao invés de gêneros compostos por tais sensações ou conceitos. Portanto, vejo estes gêneros como definíveis apenas a partir de comparações com gêneros binários. Um argumento similar pode ser feito para gêneros neutros e ambíguos.
- Gêneros afetados por experiências de vida (ex.: afrogênero, integênero, neurogênero): Embora muitas pessoas que se encaixam nesse tipo de termo possam usá-los para descrever suas experiências xenogênero, também há pessoas que usam termos assim para descrever experiências como não ter gênero por conta de neurodivergência ou ser não-binárie por conta de ser intersexo. Assim como não considero gênero-fluido uma experiência inerentemente xenogênero por “ser definida por fluidez”, considero que se a parte das experiências de vida não faz parte dos gêneros por si só (algo que deve ser decidido por cada pessoa), não há porque dizer que são experiências xenogênero.
O que eu espero aqui é dê para entender que nem toda experiência rara ou fora do binário de gênero é um xenogênero, mas que ainda assim identidades xenogênero são extremamente diversas.
(Este gráfico e uma explicação específica para ele se encontram aqui.)
Como é que identidades xenogênero funcionam, se gênero se refere ao sexo que alguém se sente ou sentiria mais confortável em ter?
Então, é aí que começa o problema. Infelizmente, muitas pessoas vivem em sociedades que julgam gênero com base em corpo, voz ou afins, e que só reconhecem mulher e homem como opções. Podem, talvez, expressar confusão se alguém conseguir ficar em cima da linha finíssima que separa esses dois gêneros dentro de uma sociedade exorsexista.
É possível que uma pessoa se sinta fora do lugar quando é tratada como homem. Essa pessoa pode então ir atrás de terapia hormonal e cirurgias que vão fazer com que a pessoa não tenha mais que passar por isso. Mas isso é uma questão externa, e que não define a identidade de gênero da pessoa. O que a sociedade julga que uma pessoa parece ser não necessariamente reflete como a pessoa se sente internamente.
Porque identidades de gênero, em geral, são formas de se definir acerca de sensações de pertencimento ou alienação em relação aos grupos de gênero existentes. A questão do que a pessoa gosta ou não gosta no próprio corpo pode ser um fator, assim como pode não ser, algo que também se aplica a várias outras questões que podem ajudar a definir a identidade de gênero de alguém.
Os gêneros binários abrangem uma série de arquétipos - como mãe, pai, cavalheiro, freira, playboy, girlboss, nerdão, bruxa ou afins - e sensações de pertencimento ou alienação em relação a tais arquétipos são muitas vezes o que define as identidades de gênero das pessoas. A sensação de pertencimento em grupos voltados para homens ou para mulheres, a linguagem usada para se referir ao gênero presumido e o conforto ou desconforto com normas de gênero também são fatores que podem ser utilizados para definir a própria identidade de gênero.
A ideia de que gêneros são definidos apenas pelos corpos que cada pessoa possui ou busca possuir é algo simplificado, feito principalmente para que pessoas cis entendam o que é ser trans de forma que se encaixe melhor com a forma cissexista que foram ensinadas (que gênero depende do sexo). Há pessoas trans binárias que não fazem todas as modificações corporais que poderiam fazer para parecerem mais cis porque não sentem necessidade, pessoas não-binárias confortáveis em corpos que “parecem binários” e até mesmo pessoas cis inconformistas de gênero que buscam corpos que não são tradicionalmente associados com suas identidades de gênero.
O tratamento social e o corpo desejado podem ser questões suficientes para que alguém se diga mulher, não-binárie ou homem. No entanto, acredito que a questão de arquétipos seja mais relevante quando se pensa em não-binaridade. Algumas pessoas são mulheres e homens; outras possuem um gênero e querem um lugar firme e definido para existir longe dos gêneros binários; outras querem neutralidade em relação a tudo isso; outras não querem participar de nada em relação a isso; e por assim vai.
Pessoas xenogênero possuem identidades de gênero relacionadas (ao menos parcialmente) a arquétipos separados do binário de gênero, e geralmente possuem uma sensação de pertencimento relacionada a tais arquétipos ao invés dos ligados a gêneros binários. Isso pode ser complicado ou abstrato pra quem vê gênero como só o corpo, mas eu garanto que até mesmo muitas pessoas binárias se atrelam a conceitos específicos ligados aos seus gêneros que vão além dos corpos ou do uso de a/ela/a ou o/ele/o.
Quero ressaltar que embora possa existir a questão de ser xenogênero e xenogenital, alterumane e/ou afins, xenogêneros são em geral termos para descrever funcionamento e/ou sensação de identidades de gênero, não para descrever corpos desejados e/ou espécies. Ou seja, uma pessoa floragênero não necessariamente sente disforia por não ser uma planta.
Existe uma pressão social cissexista para ligar identidades de gênero a tipos de corpos ou tratamentos específicos, além de uma percepção deturpada de trolls que liga ser xenogênero a ser otherkin. No entanto, definições de identidades de gênero em geral descrevem percepções internas, as quais podem ser externalizadas mas nem sempre são.
Em minha experiência, várias pessoas xenogênero tendem a ser pessoas cujos desejos para seus corpos se alinham mais com questões comuns às que outras pessoas trans desejam como transição física (como querer seios maiores ou menores ou tomar testosterona, antiandrógenos ou estrogênio). Pessoas xenogênero que querem expressar sua xeninidade com seus corpos (querendo, por exemplo, características de espécies não-humanas) tendem a ser mais raras, e muitas vezes colocam isso como questão de alterumanidade ao invés de puramente de identidade de gênero.
Não que eu esteja dizendo isso para justificar pessoas xenogênero como “pessoas trans normais”. Pessoas de qualquer identidade de gênero podem querer qualquer tipo de transição corporal, e tanto pessoas xenogênero que estão satisfeitas com os corpos que desenvolveram durante a adolescência quanto pessoas xenogênero que preferiam ter escamas ou ser incorpóreas são válidas. Só quero ressaltar isso porque muitas vezes o discurso ao redor de pessoas não-binárias (especialmente xenogênero) age como se tais experiências de gênero automaticamente nos colocassem à parte de experiências trans que são consideráveis mais comuns ou aceitáveis, mesmo quando são bastante comuns entre nós.
A identidade transxenina existe para pessoas que querem indicar uma forma de identidade, disforia, euforia, expressão, alinhamento e/ou transição de gênero relacionada com xeninidade (característica relacionada à identidade xenogênero). Não é necessário ser xenogênero para ser uma pessoa transxenina, e nem todas as pessoas xenogênero se consideram ou considerariam transxeninas.
Dizer-se xenogênero é uma escolha?
É tanto uma escolha quanto ser mulher, homem, agênero, gênero neutro ou por assim vai. Existem pessoas que veem suas identidades de gênero como imutáveis e indescritíveis de outra forma, pessoas que dizem fazer parte de tais identidades no dia-a-dia ainda que não sejam necessariamente palavras precisas para descrever suas identidades de gênero e pessoas que gostam dos conceitos e que querem fazer parte deles de forma tão forte que é difícil saber se é uma questão de ter escolhido isso ou se isso sempre foi a identidade real da pessoa.
Usando o gênero homem para alguns exemplos:
- Alguém pode se dizer homem porque sempre se viu como tal e não consegue ver sua vida de outra forma (independentemente do gênero que lhe foi designado ao nascer).
- Outra pessoa pode dizer que é homem porque é mais fácil simplificar sua identidade não-binária próxima a homem de tal forma.
- Outra pessoa pode não se importar com definir sua identidade de gênero e dizer que é homem só por preferir manter certos privilégios associados a ser vista como homem cis a ser honesta sobre o que sente em relação a gênero.
- Outra pessoa pode achar o conceito de ser homem interessante e tentar ativamente se moldar ao redor dele, e não dá pra saber de um ponto de vista externo se a pessoa “é homem por dentro” ou não. Uma pessoa tratada desde o nascimento como homem que se sente assim pode ver isso como um comportamento natural e esperado, enquanto uma pessoa tratada desde o nascimento como mulher que se sente assim provavelmente não vai se abrir sobre isso porque, no momento atual, admitir que o gênero foi uma escolha e não é uma verdade inata serve como se fosse uma admissão de que o gênero nunca esteve lá.
Obviamente, há diferenças entre escolher se dizer homem e escolher se dizer xenogênero. Uma delas é que homem é um gênero com uma carga muito mais rígida de papéis, expressões e corporalidades esperades. Outra é que escolher um xenogênero como identidade não dá nenhuma vantagem social, sendo um guarda-chuva de conceitos controversos até dentro de várias comunidades não-binárias.
Alguém que acredita que é possível ser homem pode ainda assim não acreditar que uma pessoa que se veste de certa forma ou tem certa genitália é homem de verdade. Alguém que acredita que é possível ser xenogênero provavelmente não vai exigir nenhum tipo de obstáculo a fim de provar a identidade de gênero de alguém dizendo ser xenogênero.
Porém, também vai ser bem mais comum que a pessoa xenogênero se sinta isolada em sua identidade, por não ser levada a sério na maioria dos espaços. E é possível que a pessoa xenogênero tenha que lidar com ataques de ódio até de pessoas cisdissidentes ou de pessoas que dizem ser aliadas de pessoas trans.
Enfim, respondendo a pergunta sobre se ser xenogênero é escolha ou não:
- Existem pessoas que só conseguem se descrever precisamente usando um ou mais xenogêneros. Assim, a escolha é entre se dizer xenogênero, mentir ou usar termos mais vagos.
- Existem pessoas que preferem descrever suas identidades de gênero usando metáforas de forma que assim passam a se encaixar no termo xenogênero. Por exemplo, uma pessoa agênero pode gostar de descrever sua ausência de gênero como um vácuo e assim escolher o termo gênero-vácuo ao invés de (apenas) agênero. Esta experiência conta como xenogênero, caso a pessoa queira se identificar como tal.
- Existem pessoas que podem gostar de se descrever como alguma metáfora indicada na descrição de algum xenogênero, e assim adotar algum termo dentro do guarda-chuva xenogênero ou que poderia ser descrito como tal. Na minha experiência, pessoas que fazem isso geralmente já estavam sob o guarda-chuva da não-binaridade antes de adotarem algum xenogênero. Inclusive há pessoas que fazem isso por piada e podem nem se ver como xenogênero de uma forma que consideram séria.
É possível dizer que as pessoas que se encaixam no segundo e no terceiro item escolheram ser xenogênero. Porém, isso não significa que suas identidades são inválidas ou que essas pessoas estão mentindo sobre como suas identidades de gênero podem ser descritas.
Por que não se identificar somente como não-binárie?
Não-binárie é um rótulo útil para descrever demandas de pessoas que não são nem 100% homens e nem 100% mulheres. Porém, em relação a descrever identidades de gênero em si, é um termo muito pouco descritivo.
Uma pessoa pode não ter gênero e se dizer não-binária. Outra pessoa pode ter uma quantidade imensa de gêneros e se dizer não-binária. Outra pessoa pode experienciar só o gênero mulher ou só o gênero homem, mas, por mudar entre estes de tempos em tempos, também pode se dizer não-binária. Outra pessoa pode ser quase uma mulher, mas por não ser exatamente uma mulher, se dizer não-binária.
Termos mais específicos servem para identificar melhor experiências não-binárias, especialmente em grupos com várias pessoas não-binárias. Por exemplo:
- Pessoas gênero-fluido podem querer mudar de nome e conjunto de linguagem de acordo com qual é sua experiência de gênero em cada momento. Enquanto alguém que é gênero-fluido pode ter que lidar com como indicar essas mudanças e explicar que não é só uma questão de ficar mudando de ideia sobre sua identidade, alguém que é sempre gênero neutro pode nunca ter lidado com isso ou se preocupado em expressar firmeza em relação a sua identidade.
- Pessoas sem gênero podem ter repulsão por situações onde precisam escolher ou especificar “seus gêneros”, por mais que possa haver uma certa aceitação de não-binaridade em algumas situações assim. Ume homem não-binárie que geralmente só usa o termo homem para si e que considera ser não-binárie um detalhe raramente relevante pode não ver esse tipo de situação como estressante ou discriminatória.
Pessoas xenogênero possuem a experiência comum de ter suas identidades de gênero vistas como “estranhas” ou “impossíveis”, por não serem conectadas apenas ao binário de gênero ou apenas a uma rejeição a ele.
Entretanto, xenogênero também é mais uma descrição ampla para um grupo que tem certas experiências do que uma identidade específica por si só. Uma pessoa que só consegue descrever seu gênero com a cor vermelha pode experienciar gênero de forma bem diferente de alguém que sente que seu gênero é comparável a um grande planeta que se move no espaço. Já uma pessoa cujo gênero é relacionado a um arquétipo de elfe pode nem conseguir entender tais experiências.
É por isso que existem vários xenogêneros: muitas vezes, tais rótulos são a única forma de afirmar a existência de nossas identidades de gênero específicas ao invés de empurrá-las para baixo do tapete com termos relativamente mais comuns ou bem vistos. Pode ser mais fácil ter um termo com uma definição específica e falar de nossas experiências a partir dele do que falar das experiências em um vácuo.
Linguagem em relação a experiências de gênero não-binárias está recém começando a ser desenvolvida. Não só em relação a termos, mas também em relação a como explicar como esses gêneros são experienciados. Talvez no futuro explicar como o gênero de alguém pode ser uma cor ou ter certo tamanho seja algo mais fácil, menos abstrato e menos dependente da cunhagem de termos específicos ou de acreditar que outras pessoas sabem do que estão falando, mas ainda não estamos em tal futuro.
Mas não é mais fácil descrever a identidade de gênero de outra forma?
Como já disse no item sobre se ser xenogênero é escolha ou não, isso depende de cada situação. Porém, independentemente dessa escolha apagar parte fundamental da identidade de alguém ou não, esse tipo de atitude é uma repressão cissexista.
Além disso, nem toda pessoa xenogênero tem a preocupação de se assimilar a espaços antixenogênero. Muites preferem ser honestes em relação a como experienciam suas identidades de gênero.
Algumas pessoas se abrem sobre ser xenogênero porque consideram que estão em espaços onde outras pessoas não vão se importar com isso. Outras querem normalizar ser xenogênero em espaços onde esse tipo de identidade normalmente não é visto.
A luta contra o cissexismo não deve ser limitada a tipos específicos de pessoas trans. Libertação real das normas de gênero e de sexo nunca será completa enquanto ela se preocupar mais com respeitabilidade do que com a inclusão de todas as experiências cisdissidentes.
E se alguém tiver um xenogênero problemático?
Às vezes - mais raramente do que pessoas que interpretam certos termos de má fé pensam - realmente há a possibilidade de alguém ter um xenogênero inapropriado.
Xenogêneros podem, afinal, ter a ver com qualquer conceito. Então, por exemplo, é possível ter identidades de gênero relacionadas a:
- Obras de ficção com cunho discriminatório e/ou pró-opressão;
- Personagens que cometem atrocidades indefensíveis;
- Sistemas opressivos e/ou figuras que os mantém;
- Estereótipos que perpetuam opressões;
- Comportamentos inadequados e/ou nocivos;
- Interações ou dinâmicas indesejadas e/ou tóxicas;
- Elementos vindos de culturas alheias, por mais que tais elementos estejam sendo filtrados a partir da perspectiva de alguém de fora da cultura.
Isso não significa que pessoas com tais identidades de gênero necessariamente apoiem essas coisas. E qualquer pessoa que diga que ter um gênero assim justifica ações violentas, discriminatórias ou inapropriadas de outras formas está ou mentindo (provavelmente para trollar) ou não tem noção do quanto tal comportamento não é aceitável.
No entanto, se a pessoa não está só tentando fazer pessoas xenogênero parecerem horríveis ou sem noção, a questão é essa: a experiência de gênero que a pessoa tem é real. Dependendo do caso, há algumas coisas que essas pessoas podem fazer:
- Usar termos mais abrangentes pra falar de sua identidade de gênero, ao menos na maior parte dos espaços (ex.: xenogênero, não-binárie);
- Tentar achar algum termo cuja definição também abrange sua identidade de gênero de forma relativamente específica, mas que não força a pessoa a ter que detalhar as questões problemáticas (ex.: se alguém tem um gênero relacionado a uma palavra estigmatizada, pode usar lexegênero ao invés de [palavra]léxique);
- Ao mencionar o gênero para pessoas que não o conhecem, é possível explicar sobre suas circunstâncias, justificando que tal identidade não é um endosso do problema com tal identidade, colocando discussão sobre a identidade sob avisos de conteúdo e afins.
Qual a ligação entre xenogêneros e neurodivergência?
Muitas pessoas neurodivergentes se sentem alienadas em relação aos comportamentos esperados de pessoas binárias e/ou não entendem os conceitos de homem ou mulher o suficiente para se identificar com tais gêneros. Tais pessoas comumente se veem como não-binárias e, se suas identidades de gênero podem ser descritas como sensações, sentimentos, conceitos, espécies ou até mesmo com suas neurodivergências, elas podem acabar se vendo como xenogênero.
Xenogêneros não são exclusivos de pessoas neurodivergentes. A ideia de que “só alguém neurodivergente usaria esses termos aí” é fundamentalmente capacitista. Sinestesia é algo que afeta certas pessoas de forma que elas são xenogênero por conta disso, mas nem todas as pessoas xenogênero neurodivergentes são sinestetas.
Existem neurogêneros - identidades de gênero dependentes de neurodivergências e por isso específicas a pessoas neurodivergentes - que são também xenogêneros. Mas nem todo neurogênero é xenogênero (por razões especificadas na primeira seção), assim como nem todo xenogênero é um neurogênero.
É possível que um dos motivos pelo qual tantas pessoas xenogênero sejam neurodivergentes é que é mais fácil admitir ser algo fora do comum quando uma existência já não é aceita como a correta. Por exemplo, se uma pessoa já tem poucas amizades e não é levada a sério quando tenta se comunicar, pode ser mais fácil aceitar sua realidade como xenogênero ou se atrair pelo conceito em comparação a alguém que teria mais a perder caso se abrisse como xenogênero.
Quais tratamentos que pessoas xenogênero usam? Qual o pronome que uso para alguém [insira xenogênero aqui]?
(Caso alguém lendo não entenda muito sobre o assunto de linguagem pessoal, um texto detalhado sobre isso se encontra aqui. Caso a questão seja só entender de forma resumida do que os termos desta seção se tratam, há uma explicação curta do que é artigo, pronome e final de palavra aqui. Uma explicação relativamente sucinta sobre o assunto mas mais contextualizada do que o link anterior pode ser encontrada neste panfleto em PDF.)
Assim como no caso de qualquer pessoa, especialmente quando se fala de pessoas não-binárias, linguagem pessoal não precisa ter associação com gênero. Inclusive, o uso de “linguagem masculina”, “linguagem feminina” e “linguagem neutra” para descrever conjuntos específicos é prejudicial à expressão pessoal de conjuntos de linguagem e reforça conformidade de gênero.
Ou seja:
- Existem pessoas xenogênero que usam a/ela/a.
- Existem pessoas xenogênero que usam o/ele/o.
- Existem pessoas xenogênero que usam estes dois conjuntos.
- Existem pessoas xenogênero que usam a/ela/a e/ou o/ele/o e mais um ou mais conjuntos.
- Existem pessoas xenogênero que usam um ou mais conjuntos que veem como neutros, como -/elu/e, -/-/- ou ê/ile/e.
- Existem pessoas xenogênero que aceitam qualquer conjunto de linguagem.
- Existem pessoas xenogênero que, sim, tentam usar conjuntos que remetem a suas identidades de gênero.
- Existem pessoas xenogênero que usam outros conjuntos só porque gostam deles ou de ser associadas com eles. Ou por serem os conjuntos que menos desgostam.
- Existem pessoas xenogênero que mudam de conjunto(s) de tempos em tempos.
Existe o conceito de xenopronomes (me refiro aqui a pronomes porque é um conceito que em geral só se fala sobre na língua inglesa ou de forma extremamente anglocêntrica). Os lugares onde pessoas definem o termo formalmente falam que são pronomes teoréticos que não teriam como ser colocados em palavras, mas ocasionalmente existem pessoas que usam o termo ou para se referir a neopronomes (ex.: elu, elx, íli, ale, estrel) ou a neopronomes que foram feitos tomando xenogêneros ou xeninidade como base (ex.: estrel para estrela, ogo para fogo, miau para gates ou miados).
A definição que fala sobre xenopronomes serem pronomes teoréticos não tem muita ligação com ser xenogênero por si só, ainda que pessoas que desejem ser tratadas por tal forma possam ser xenogênero e possam ter essa vontade por conta de ser xenogênero. A outra definição tem mais a ver com xenogênero, mas também não é exclusividade de pessoas xenogênero.
Talvez seja possível dizer que alguém que usa fo/ogo/o por ser um conjunto relacionado com fogo ao invés de com ser homem ou ser mulher esteja usando um conjunto de linguagem xenino (independentemente dessa pessoa ter ou não um gênero relacionado com fogo, calor, luz ou o que for). Mas seria também possível alguém usar esse conjunto só por gostar da sonoridade, sem se importar com a conexão com fogo.
É o mesmo caso do conjunto a/ela/a poder ser usado para remeter à feminilidade sem que isso torne o conjunto universalmente feminino, ou sem que conjuntos femininos tenham que ser resumidos a a/ela/a. A intenção pessoal pode ter a ver com identidade e/ou expressão de gênero, mas classificar um conjunto ou um elemento de um conjunto ignora outras possibilidades.
Talvez isso não seja tão óbvio quando se trata de um conjunto como fo/ogo/o. Mas que tal e/el/a? Uma pessoa pode usar por remeter à palavra estrela. Outra pode só estar usando um neoartigo comum, um neopronome simples e um final de palavra padrão. Digamos que alguém usando ce/els/u esteja se referindo a céu. O pronome els ainda é xenino quando usado dentro do conjunto -/els/e?
Eu não sou contra sugestões xeninas como estas ou outras. Só espero que dê pra entender que associar certas identidades de gênero ou certos conceitos com certos conjuntos de linguagem ou com elementos específicos de conjuntos de linguagem é algo limitante que vai contra várias experiências reais.
Todos esses xenogêneros são realmente usados?
Enquanto existem pessoas que cunham xenogêneros só porque é uma atividade fácil (é só se decidir sobre um conceito e um nome atrelado a ele, e dependendo de quem for também vai fazer um retângulo com faixas coloridas pra que o termo tenha uma bandeira), muitos xenogêneros acabam sim sendo utilizados. Isso porque muitas pessoas xenogênero também possuem múltiplos gêneros, e não é difícil encontrar pessoas em espaços pró-xenogênero com listas de gêneros possuindo de vinte a centenas de xenogêneros.
Então, pra responder a pergunta: não, eu acho que nem todos os termos cunhados são usados por pessoas que se encaixam neles. Mas acredito que a maioria seja, porque tem muito mais gente usando esses termos do que parece.
Imagino que o interesse nesse tipo de pergunta tenha a ver com “cortar” identidades de gênero de listas, de não ter que “se preocupar com todos esses gêneros”. Já aviso que o esforço é inútil. Por mais que uma lista tente incluir vários termos mais abrangentes ou comuns, sempre vão aparecer pessoas com xenogêneros obscuros que não se encaixam ou não querem se encaixar nos termos listados.
Dito isso, ninguém precisa decorar todas as identidades de gênero existentes. É só não descrever pessoas com identidades que elas não possuem que isso não deve causar nenhum problema.
Como alguém que mantém listas de identidades de gênero (e que geralmente precisa traduzi-las), eu não sou muito fã de pessoas cunhando identidades de gênero à toa, só como hobby ou produção de conteúdo. Mas sei que existem infinitas possibilidades em relação a identidades de gênero, e que portanto sempre terei que adicionar mais coisas às listas para ajudar a representar a verdadeira diversidade das identidades não-binárias.
(Fonte)
O que é xênique? Por que alguns gêneros são descritos como xênicos? Existe diferença entre xênique e xenine?
Xênique é alguém cujo alinhamento de gênero é com xenogênero, assim como lunariane descreve alguém cujo alinhamento de gênero é com mulher. Alinhamento de gênero por si só é um conceito complexo e muito mal entendido.
Vou tentar resumir: algumas pessoas não-binárias começaram a se dizer “alinhadas a homens” ou “alinhadas a mulheres” para significar uma porção de coisas, como por exemplo:
- Ter identidade de gênero parecida com tal gênero binário;
- Ter experiências similares a homens ou mulheres trans por conta do que precisam passar para conseguir hormônios, mudanças de nome ou afins;
- Ser tratadas como um certo gênero binário em sua vida diária;
- Ter afinidade com termos e/ou grupos associados com certo gênero binário (ex.: movimento feminista, comunidades de homens gays).
Depois que termos específicos foram cunhados pra descrever quem tem alinhamento com homens (solariane) e com mulheres (lunariane), pessoas começaram a também explorar outras formas de alinhamento. O termo xênique (original: xenic) foi então cunhado para descrever aquelus alinhades com xenogêneros.
Geralmente, pessoas xênicas são pessoas xenogênero que não só usam um ou mais xenogêneros para se descrever, mas que também incorporam características de ser xenogênero em sua expressão de gênero, sua transição desejada, seu conjunto de linguagem ou afins. Às vezes também são simplesmente pessoas xenogênero que não querem ter que lidar com a dualidade de escolher se são agrupadas com homens ou com mulheres, e que preferem afirmar que seu único alinhamento é com o próprio gênero que são. Ser xênique não se resume nisso, mas geralmente são estas as situações que fazem com que alguém se diga xênique.
Enfim, depois da cunhagem de solariane e lunariane, começou a ser popular cunhar um monte de identidades de gênero e orientações que dependem de alinhamentos de gênero, ainda que tal conceito exista justamente para descrever situações que muitas vezes vão além da identidade de gênero. E, por algum motivo, o termo xênique foi unicamente popularizado como um sinônimo pra quem não queria usar xenogênero ou xenine ao definir identidades de gênero.
Por exemplo, há cunhagens de termos que são separadamente “para pessoas femininas”, “para pessoas masculinas”, “para pessoas neutras” e “para pessoas xênicas”, mesmo que alinhamento de gênero não tenha a ver com as outras definições. Eu acredito que a intenção nesses casos era a de dizer “para pessoas xeninas” - novamente, xeninidade é a característica que parte de ser xenogênero - mas xênique acaba sendo o termo usado.
Também já vi ocorrerem casos como “atração por mulheres”/“atração por homens”/“atração por pessoas xênicas”, quando, novamente, os outros termos não são relacionados a alinhamentos. Desta vez, é a palavra xenogênero que seria mais apropriada.
A própria questão de atração por um alinhamento de gênero é controversa, visto que há múltiplas razões para alguém ter um alinhamento de gênero e nem todas são relacionadas com aceitar atração de pessoas que sentem atração pelo gênero com o qual estão alinhadas. Embora discussões sobre ter atração específica por pessoas não-binárias ainda sejam relativamente novas, ainda acho que faz mais sentido alguém falar em ter atração por pessoas xenogênero ou por pessoas não-binárias do que por pessoas xênicas.
Acredito que já tenha dado pra entender a relação entre xenine e xênique. Xenine descreve algo ou alguém que tem característica de xenogênero, xênique descreve alguém que tem certo alinhamento de gênero. Embora palavras evoluam, acredito que isso não se dê de forma tão rápida enquanto é possível procurar as definições de cada termo online.
Pessoas não precisam ser xenogênero para ser xênicas ou xeninas, mas por conta do estigma em cima de ser xenogênero, é mais comum que pessoas xenogênero se descrevam destas formas. Também é possível ser xenogênero sem ser xenine ou xênique. Por exemplo:
- Alguém é gendoux e, por mais que goste de usar cores pastéis, a pessoa usa a/ela/a, descreve sua expressão de gênero como andrógina e não se esforça para expressar sua identidade xenogênero. Tal pessoa não se descreve como xenina e não se vê como alinhada a nenhum gênero ou grupo de identidades de gênero.
- Alguém é cervogênero e por conta disso se diz homem não-binárie. Apesar de usar tanto ê/elu/e quanto o/ele/o, tal homem NB não incorpora nada da parte xenina de seu gênero em como age, se veste ou se reinvindica. Elu se considera alinhade com o gênero homem e considera que faz mais sentido se dizer masculine do que xenine.
Considerações finais
São estas as coisas que consigo pensar que já vi pessoas perguntando sobre em relação a xenogêneros (ao menos quando não se trata de xenogêneros específicos). É possível que eu adicione mais coisas aqui caso encontre outras perguntas.
Adição 1 (11/05): É possível ser xenogênero e cis ou binárie?
O que é possível:
- Ter um xenogênero que também está conectado a ser de um gênero binário (ex.: glitravir, petiera);
- Ter um xenogênero cujo arquétipo é tradicionalmente incluso em um gênero binário (ex.: dulcigênero, amaragênero);
- Ter mais de um gênero - ou uma identidade de gênero com múltiplas facetas - onde há um gênero binário acompanhado de xenogêneros (e possivelmente de outras identidades que não são xenogêneros) também.
Mesmo que alguém não veja muita diferença entre o gênero binário que lhe foi atribuído ao nascer e o seu, ser xenogênero provavelmente não vai ser algo aceito no lugar onde vive. A pessoa pode ser acusada de querer se colocar em caixas desnecessárias, não ter o termo que usa levado a sério, ser xingada por “acreditar nesses gêneros inventados” e por assim vai.
Talvez alguém cujo gênero seja muito parecido com o atribuído ao nascer não se sinta confortável dizendo que é trans. Mas ter que esconder sua percepção sobre o próprio gênero para não ser alvo de exclusão, chacota ou violência não é uma experiência cis. Quem quiser pode se dizer isogênero, cisdissidente, ou não usar nenhum termo para sua modalidade de gênero. No entanto, não vejo muito sentido em chamar essa experiência de cis.
No caso de pessoas cujo gênero atribuído não possui similaridades com seu xenogênero, tal xenogênero pode adicionar ao exorsexismo e portanto ao cissexismo que sofre, de formas já citadas. A pessoa até pode ter mais dificuldade em ter sua identidade transfeminina, transmasculina ou similar aceita caso também seja abertamente xenogênero.
No caso de pessoas com múltiplos gêneros: esta é uma experiência não-binária. Se a pessoa quer se dizer não-binária ou não é com ela, mas nenhuma experiência gênero-fluido, bigênero, trigênero, poligênero, poligênero-fluxo, pangênero ou afins é vista como aceitável dentro dos padrões cis.
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