Política institucional é pra gente binária

AC: Política, cissexismo, exilinguismo

Vi vários convites para eventos onde o objetivo é fazer propaganda para candidates. Não tive vontade de ir em nenhum.

Não vejo motivos pra isso: vou perder meu tempo fazendo propaganda pra alguém que nem sabe que eu existo e que talvez nem vá defender causas importantes pra mim, em um ambiente onde argumentar contra alguém que vier me maldenominar ou cometer outra violência vai prejudicar a campanha de quem eu deveria estar ajudando? Vou ter que defender partidos enquanto fico remoendo na minha cabeça toda vez que seus programas faltaram com segmentos da população NHINCQ+?

E aí eu fiquei pensando além disso.

Não há motivo lógico para defender neolinguagem ou não-binaridade - ou mesmo cisdissidência em geral, embora defender pessoas trans binárias seja uma posição relativamente popular na esquerda atual - como parte de um programa de governo. Nossa população é uma minoria numérica e é muitas vezes colocada como piada e frescura mesmo entre pessoas “LGBT”. Isso não aumenta tanto os votos que ume candidate pode ganhar quanto os votos que podem perder.

Acredito que pensar nas questões de grupos marginalizados minoritários seja uma questão de ética. Acredito que deixar de usar o/ele/o como linguagem genérica seja uma questão de ética. Mas ética não ganha votos: se ganhasse, PSTU e UP teriam bem mais presença na política, enquanto figuras conhecidas por corrupção não continuariam por aí sendo eleitas e reeleitas.

Quem ganha mais votos em territórios grandes são quase sempre figuras genéricas e familiares. Lula e Boulos tiveram que moderar o tom pra conseguir mais votos do que em eleições anteriores. Mulheres, pessoas racializadas, pessoas NHINCQ+ e pessoas de outros grupos minorizados, embora possam ganhar eleições de vez em quando, possuem a desvantagem inerente a serem considerades “fora do normal”. Alguém usando neolinguagem corretamente, defendendo pessoas não-binárias e se recusando a usar linguagem capacitista para falar de sues oponentes não conseguiria ser tão popular com um povo que ou tem orgulho de seus preconceitos ou não quer examiná-los quanto alguém que deixa essas questões éticas de lado pra se mostrar “junto com o povo” (majoritariamente cis, majoritariamente perissexo, majoritariamente alista, majoritariamente sem alergias alimentares, majoritariamente despreocupado com as consequências negativas da supremacia cristã, majoritariamente desinteressado em buscar alternativas a se render a grandes empresas para espaços de socialização e assim por diante).

As próprias referências a “eleitoras e eleitores”, só para depois cair em o/ele/o para descrever os dois grupos, já indica: só os blocos grandes importam. Só quem é padrão importa.

Pessoas cisdissidentes, de modo geral, acabam tendo suas próprias comunidades alternativas: há ocupações cisdissidentes para não ter que lidar com o cissexismo de outras ocupações, há grupos onde se trocam dicas de hormonização pra evitar lidar com médiques cis, há comunidades online e offline específicas a pessoas não-binárias que muitas vezes podem ser os únicos lugares onde a interação social pode não vir agregada de um grande risco de disforia social. Quando precisamos acessar algum serviço que não podemos ou conseguimos fazer sozinhes, como de depilação com laser ou de terapia, a gente tende a perguntar entre si por lugares onde vão nos desrespeitar menos.

Colocar questões trans, desde a maldenominação por conta de documentação ou aparência até a situação precária de viver na rua porque a pessoa não consegue emprego e nem a família e nem abrigos públicos aceitam a pessoa, como frescuras que acontecem “porque a pessoa decidiu ser assim”, como se pra todes ou muites de nós a mutilação de nossas identidades cisdissidentes fosse simples e fácil, é não só ignorância como outra forma de marginalização.

(E a política eleitoral não tem espaço pra ensinar pessoas, porque só tem tempo e espaço pra sinalizar o quanto os valores de cada candidate são alinhados com o que algum grupo pensa.)

O CR POP TT, lugar em São Paulo onde é possível marcar consultas em diversas especialidades do SUS desde que você seja trans, travesti, não-binárie e/ou intersexo e residente da capital, é maravilhoso, mas é uma exceção: a maior parte das cidades não conta com tal serviço, mesmo tendo múltiplos postos de saúde. E não é algo do que o [prefeito atual concorrente à reeleição] Ricardo Nunes vai se gabar (não que tenha sido iniciativa dele, mas é sob a SMS do governo dele que o centro foi inaugurado), a não ser como um número a mais, porque mesmo que ele tenha o reconhecido como demanda da população, a prioridade dele é agradar a um público cis, o qual frequentemente é antitrans também.

Eu entendo que em nem todas as eleições todas as opções oferecidas sejam igualmente danosas. Meu ponto aqui não é um pedido pelo voto nulo ou uma falsa equivalência entre todos os partidos existentes.

Porém, como alguém não-binárie, como alguém que dedicou anos falando de e defendendo a diversidade de linguagem pessoal, identidades não-binárias, modalidades de gênero e orientações e como alguém que ainda é constantemente maldenominade na maior parte dos eventos que não organiza, não importa o quão supostamente inclusivos sejam, eu não me sinto bem-vinde nas falas da grande maioria da classe política, incluindo mesmo as das pessoas que juram que são as únicas opções elegíveis que vão defender meus direitos. E não consigo confiar que qualquer reconhecimento positivo de pessoas como eu não é negociável em troca de votos e fundos das “famílias tradicionais” cristãs.

A maioria das pessoas cis podem sair na rua ou se inscrever em atividades que envolvem convivência com estranhes sem correr o risco de serem bombardeadas com maldenominação. A maioria das pessoas cis pode ir atrás de relacionamentos sem ter que se preocupar com ter que revelar que ou sua identidade de gênero ou sua genitália talvez não seja a esperada. A maioria das pessoas cis que vivem com outras pessoas cis não precisam se preocupar em ser expulsas de casa ou ter roupas e objetos jogades fora por não condizerem com a imposição da cisgeneridade.

E partidos grandes permitem que essa maioria não seja desafiada em relação aos seus julgamentos e desejos, mesmo que existam membras que sejam pessoas cisdissidentes. Por isso, não dá pra se surpreender quando Boulos não faz questão de defender o uso de neolinguagem ou quando ninguém fala de questões cisdissidentes fora dizer que “linguagem neutra” não será ensinada nas escolas porque “tem que dialogar com a sensibilidade, com o conjunto da sociedade”.

Mas ativistas de partidos de esquerda também deviam se tocar de que é esse o motivo de tantas pessoas cisdissidentes - especialmente não-binárias - estarem ocupadas demais com nossas próprias pautas pra somar em suas organizações majoritariamente cis e em seus eventos com falas e atitudes cissexistas. Especialmente quando o trabalho de educação que fazemos em relação às nossas pautas - algo que tendemos a fazer pra ter uma parcela do respeito garantido a pessoas dentro das normas - é visto como fútil, egoísta ou como coisas que não merecem adentrar espaços “do povo”.