Meu celular foi para o conserto recentemente, e ainda que eu tenha me recusado a pagar quase 3000 reais para que trocassem duas placas para resolver problemas relativamente inofensivos (assim como o pessoal da assistência técnica se recusou a falar se havia algum problema grave nas placas e se não havia como só trocar alguma peça mais barata), isso me deixou dias sem me ocupar no tempo fora do computador com redes sociais, chats e AO3.
No lugar disso, fiquei lendo livros, a maioria pelo meu Kobo (dispositivo leitor de e-book que não é ligado à Amazon). Estas são minhas opiniões sobre eles. Vou tentar evitar detalhes que vão além da premissa e temas.
Angel Radio
Eu já estava no meio desse livro quando fui consertar o celular, mas terminá-lo antes de ler outros mesmo que ele não tenha me engajado tanto era uma prioridade pra mim. Eu comprei o livro por ser de alguém que eu vi em um vídeo do YouTube dissecando um livro furry extremamente racista para o qual não quero dar atenção pública (mas quem quiser pode me perguntar). Como a pessoa parecia saber do que estava falando em relação a narrativas e representatividade, resolvi ler seu livro.
Angel Radio é um livro que… apreistei. Num sentido bem, sei lá, 5/10.
É sobre uma adolescente que sobrevive à aniquilação da maior parte da humanidade por anjos, seres que são chamados desta forma por remeterem a anjos da Bíblia. Após morar por um tempo em sua cidade vazia, ela escuta uma transmissão de rádio e decide ir atrás de outras pessoas que podem ainda estar vivas.
O livro tem pouques personagens e não senti muito apego por nenhume delus. Tem vários mistérios, mas considerando que anjos são seres capazes de praticamente qualquer coisa, não há muita coisa que pode ser decifrada. Tem umas surpresas interessantes, mas isso só faz com que reler o livro seja uma atividade menos atraente.
Tem umas pistas de um romance sáfico e que a personagem principal talvez seja múlti, mas eu não descreveria o livro como um romance. Pode ser interpretado como tal, mas também pode não ser.
Até onde sei, fora a possível questão de interpretar certos aspectos da mitologia cristã de formas específicas e da questão de apropriação cultural por conta de um nome escolhido que provavelmente não tem a ver com a cultura da pessoa, não há nada muito ofensivo no livro. Mas também não acho que é uma história muito profunda ou cheia de representatividade.
Talvez eu simplesmente não seja o público-alvo, e tá tudo bem. Mas a não ser que alguém queira muito ler histórias de terror sobrenaturais envolvendo anjos como criaturas completamente alienígenas, eu provavelmente não recomendaria o livro.
Lost in the Moment and Found
Pois é, eu ainda não tinha lido o livro deste ano da série Wayward Children. Porém, eu já tinha este na lista de desejos e comprei assim que arranjei tempo pra ler.
Este é o oitavo livro da série, e como todos os livros de número par, ele conta a própria história sem que esta tenha ligação com livros anteriores. LitMaF é sobre Antsy, que após escapar de uma situação abusiva da própria família vai parar em uma loja onde todes es coisas e seres que são perdides em todos os mundos aparecem.
Para quem não conhece, Wayward Children é uma série sobre crianças e adolescentes que entram em Portas que es levam para mundos onde fazem parte de jornadas fantásticas, no estilo Alice ou Nárnia. Só que a série lida com as realidades das consequências após tais aventuras: tais crianças ou adolescentes são eventualmente expulses de mundos nos quais aprenderam a se encaixar, frequentemente passando anos ali e mudando profundamente em suas jornadas, só para irem parar em ambientes familiares que não entendem o que houve e que veem essa incongruência como um problema.
LitMaF tem 148 páginas, então tem pouca coisa que posso falar sobre a história que não dá a impressão de ser spoiler. Eu pessoalmente gostei mais de histórias anteriores - o afastamento das gêmeas em Down Among the Sticks and Bones, a adaptação ao mundo rígido onde Lundy vai parar em In an Absent Dream e as realidades por trás da mitologia do mundo de Across the Green Grass Fields - mas é possível argumentar que Antsy é a protagonista que mais sofre e talvez isso seja mais atraente para certas pessoas.
Também acho que é possível ligar a questão de consequências de trauma pesado com o preço final que Antsy paga, o que é uma ideia genial. (Mas assim, tadinha. D’:)
Enfim, é um livro digno da série e já estou esperando o livro 9, que vai continuar a história terrestre da escola de Eleanor West pra onde tais crianças e adolescentes vão após suas aventuras.
Take a Hint, Dani Brown
Eu tinha esse livro faz tempo, e acho que era por causa de alguma recomendação do Tumblr. Só não sei exatamente qual era o tipo de recomendação, especialmente porque é o segundo livro de uma trilogia (mesmo que sejam todas histórias separadas). Enfim, finalmente li o livro, e gostei bastante.
Ele é classificado como uma comédia romântica, e é, eu não achei ele exatamente humorístico mas consigo entender tal conclusão. A premissa é que um vídeo de duas pessoas que se consideram amizades, Dani e Zaf, vira um meme popular e que essas duas pessoas decidem fingir que são um casal por um mês pra tentar conseguir capitalizar essa popularidade em doações para ampliar um projeto do Zaf de oferecer apoio à saúde mental de atletas.
Eu gosto muito da Danika. Ela é uma bruxa bissexual na academia que está lidando com a preparação de uma apresentação sobre raça e gênero em um seminário onde também vai estar uma professora que ela idoliza. Ela também tem repulsa à ideia de relacionamentos românticos por causa de trauma e portanto só vai atrás de sexo sem comprometimentos.
Mas Zafir também é um personagem interessante! Ele é um segurança de prédio de faculdade e ex-jogador de rugby com ansiedade e trauma, e o livro respeita a questão de neurodivergências não serem simplesmente curadas depois de alguma epifania mas também não deixa Zaf em um estado de estar permanentemente preso em limitações por conta do neurótipo.
O livro deixa explícito bem cedo que Dani não é arromântica, só alguém que acha relacionamentos românticos cheios de expectativas chatas que ela não consegue cumprir. E Zaf, mesmo apaixonado, consegue (na maioria das vezes) respeitar esses limites. É uma história adorável mas também sexual (há vários pensamentos sexuais dos dois pontos de vista e duas cenas de sexo) e com seus momentos onde as coisas não dão certo.
Não é um livro que eu leria se não tivesse sido recomendado a mim, mas é um livro do qual gostei bastante.
Real Service
Aviso: Este é um livro de não-ficção sobre como se portar dentro de um cenário de BDSM permanente envolvendo dinâmicas de poder. Enquanto ele é mais sobre serviços que são tarefas do dia-a-dia e eu não vou falar sobre nada erótico aqui, entendo que o assunto possa ser desconfortável para algumes.
Este livro é interessante pelo quão prático ele é. Por mais que eu entendesse a premissa mesmo antes de comprar, achei que iria conter mais sobre elementos tipicamente eróticos. Porém, se alguém estiver mais interessade nisso, recomendo ir atrás de algum outro livro.
Real Service é basicamente um manual de como fazer com que uma relação envolvendo os serviços permanentes de alguém funcione. Ele contém, entre outras coisas:
- Motivos pelos quais alguém pode querer esse tipo de relação, com suas vantagens e desvantagens;
- Dicas sobre o que fazer em casos de desentendimento sem que fique uma relação amarga ou desrespeitosa;
- Avisos sobre atitudes e ações que não devem ser aceitas nesse tipo de relação (em relação a ambos os lados);
- Listas de atividades que alguém oferecendo serviços domésticos pode oferecer em diversos níveis de complexidade (em relação a cozinhar, dirigir, marcar compromissos, limpar a casa e afins).
Também chama atenção para outras questões que podem não vir à tona quando a coisa sai de um cenário de fantasia ou de uma seção de algumas horas e passa a ser uma performance permanente. Por exemplo, o livro aponta que devem ser priorizadas as ações que pessoas querem realmente que sejam feitas dentro da relação, ao invés de focar em estereótipos de submissão que podem nem estar trazendo tanto benefício em relação ao prazer e ao trabalho que tais ações pedem.
Por não estar aplicando o que tem neste livro na prática, eu não tenho como julgar o quanto dele é pertinente ou prático. Porém, ele parece ser sensato em relação a limites, foi escrito por um casal que está nesse tipo de relacionamento e é recomendado por outres praticantes de BDSM, então não acho que é uma recomendação inválida.
Dito isso, o livro tem alguns problemas de linguagem discriminatória ou potencialmente problemática:
- Há algumas passagens que dão a entender que alguém “com (sérios) transtornos mentais” não poderia participar de algum tipo de relação desse tipo;
- Há pouquíssimas menções sobre a possibilidade de alguém não ser capaz de fazer certa ação, com certas ações sendo caracterizadas como essenciais ou básicas mesmo que dependentes de habilidade, capacidade ou contexto cultural. O livro comenta que em relação a tais serviços é importante informar se a pessoa não sabe/consegue fazer uma das coisas na lista, mas mesmo assim a lista de ações menciona que, por exemplo, ajoelhar-se só é uma habilidade básica caso a pessoa seja capaz disso;
- O pronome neutro usado é they na maioria das vezes mas há algumas passagens onde alternam he e she explicitamente para “não especificar gênero”;
- Passagens geralmente usam “todos os gêneros” ou “qualquer gênero” ao invés de “ambos os gêneros”, mas a única menção a pessoas cisdissidentes (incluindo não-binárias) é de uma menção a pessoas transexuais potencialmente tendo sentimentos complexos em relação a fazerem tarefas associadas com certos gêneros. Isso sem contar a biografia, que menciona que um dos autores é FTM transgendered;
- Uma passagem fala que para alguém bissexual oferecer serviços sexuais a pessoa deve ter tido experiência sexual com mais de um gênero. A mesma passagem também deixa implícita a ideia de que pessoas não-bissexuais só possuem um “gênero não-preferido”;
- O livro usa constantemente a palavra mestre para se referir à parte que recebe os serviços e serviçal para se referir à parte que faz os serviços. O livro também menciona escrave algumas vezes como uma das possibilidades de termos que a parte que faz os serviços pode usar.
Enquanto algumas destas coisas podem ser esperadas em um livro de 2011 sobre BDSM, isso não significa que não são avisos válidos de eu dar antes de alguém querer ler o livro por conta da recomendação.
“It makes me, a minor, uncomfortable” - Media and Morality in Anti-Shippers’ Policing of Online Fandom
Esta é uma tese disponível gratuitamente sobre o policiamento via assédio e distorção de argumentos feito por antishippers, especialmente na fandom de Voltron. Enquanto eu acho que é uma boa introdução para quem não conhece muito sobre o surgimento e os problemas do movimento antishipper, a própria tese destaca que a falta de perspectivas de quem foi e deixou de ser antishipper faz falta, assim como a necessidade de pesquisa sobre como antishippers se encaixam em questões sociais maiores.
Elatsoe
Ellie é uma adolescente assexual com um cão fantasma em um mundo onde existe magia e não-humanes sofontes. Ela vem de uma linhagem de mulheres Apache Lipan capazes de trazer seres mortos para o mundo físico. Um primo querido dela morre e conta pra ela em um sonho quem o matou, além de pedir para que Ellie proteja a família dele, e ela viaja para a casa da viúva dele para ajudar com essa questão.
Eu gostei do procedimento da história, dos mistérios e do mundo. Não há nada na história que me pareceu ofensivo, irritante ou particularmente chato. No entanto… o livro em si também não me interessou muito. Acho que es personagens são razoavelmente escrites em relação a consistência, falhas e qualidades, mas também não teve ninguém que eu adorei ou me identifiquei muito.
Não acho que este é necessariamente um problema do livro, porém. Vi que várias avaliações reclamam do quanto Ellie é infantil (às vezes também incluindo Jay, que é seu melhor amigo), mas não acho que alguém de 17 deveria necessariamente agir de forma mais madura. Uma das críticas que concordei é que às vezes parece inconsistente que Ellie e Jay tenham sido amigues pela vida inteira, visto que parecem haver mais comentários trocados que mostram o quanto não se conhecem do que comentários mostrando o que têm em comum, mas não é como se isso ocupasse muito da narrativa.
Este livro é recomendado pela representação a-espectral (Ellie é explicitamente assexual e não demonstra interesse romântico em ninguém), mas fora questões como não haver foco em sexo ou romance, uma ou outra vez que a assexualidade da Ellie é trazida à tona e um ou outro comentário sobre Ellie não querer ter filhes, tal assexualidade não traz muito pra história. Não vejo problema nisso, mas se a ideia é pegar um livro com o objetivo de entender melhor pelo que pessoas assexuais passam, eu não recomendaria este.
Outra coisa que acho bom avisar pra quem ler o livro é que esta é uma história que gira muito em torno de racismo e colonialismo. Questões como violência anti-indígena e processos de colonização são discutidas. Se a ideia for pegar um livro pra escapar do racismo no mundo real, também não recomendo este.
The Call-Out
Por um lado, eu realmente gosto do realismo da obra. Por outro, ele acaba por ser decepcionante: não há realmente um final feliz ou trágico, cada pessoa segue a própria vida.
The Call-Out é uma história contada em rimas - o que faz com que eu ache que seja mais difícil de ler para aquelus que não estão muito acostumades a ler na língua inglesa do que as outras obras citadas aqui - que conta eventos desde uma noite de ano novo até a próxima, passando por acontecimentos marcantes na vida e em relacionamentos de várias pessoas queer (sendo que a grande maioria des personagens são mulheres trans).
Há reflexões sobre vantagens e problemas que comunidades queer possuem: senso de comunidade, divisão entre gerações, falta de noção de pessoas brancas acerca de questões raciais, discussões sobre como lidar com teoria progressista queermísica, tentativas de lidar com abuso que nem sempre dão certo e por assim vai.
Eu não diria que é um livro pra todo mundo. Mas é interessante pra quem quer algo queer que lida com questões mais atuais e de círculos mais envolvidos com justiça social, ao invés de obras que simplesmente possuem personagens queer mais que ignoram a questão de comunidade.
Pra quem for ler: aviso que o livro fala de abuso sexual e de isolamento por conta de cancelamento, tem cenas de sexo (uma das quais é coerciva) e contém instâncias de racismo e transmisia.
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